Uma via de mão dupla: crítica como ficção e vice-versa


Oficina

3 de dezembro de 2023

16h—17h

Fasc (Festival de Artes de São Cristóvão

Salão de Literatura Manoel Ferreira


A literatura é, por excelência, o espaço do híbrido. Nela, todos os discursos podem flutuar, mas, em nenhuma hipótese, determinar o trabalho de construção de linguagem. Em “Uma via de mão dupla”, importa, mais que qualquer outro gesto de hibridismo, a assimilação do discurso crítico em obras de ficção e vice-versa: afinal, que tipos de trânsito estas podem estabelecer com aquele? Rastreando essas relações nas obras de Ricardo Piglia e Silviano Santiago, a oficina parte das imagens da arte rupestre na América Latina para, ao final, chegar a uma proposição com o fragmento de texto do manto de apresentação de Arthur Bispo do Rosário, no qual ele escreveu “Eu preciso destas palavras — escrita.”


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Roteiro


1. Apontar para uma origem: a manifestação rupestre na América Latina:


— Pensar nos vestígios da arte rupestre que, resistindo ao apagamento, apontam para o gesto de escrita: a escrita como mobilização de uma comunidade que abandona o uso instrumental do código linguístico para promover uma mediação — agora, entre imagem e verbo (César Aira);

— Pensar nos vestígios da arte rupestre como não só a origem, mas também o fim de uma ideia de literatura, coisas que, nesse campo, confundem-se propositalmente;

— Embaralhar formas visuais: arte rupestre e pixação. Nas duas manifestações, está presente o desejo pelo rastro, pelo vestígio, efêmero e precário.


2. Em perspectiva: o elemento autóctone e o elemento europeu:


— Pensar na imposição — através da violência — do código linguístico e código religioso europeus como a causa do hibridismo na América Latina (Silviano Santiago). 

— Pensar, ao mesmo tempo, no hibridismo como uma forma de insubordinação à violência colonial, impedindo a consolidação do espaço latino-americano tão-somente como o espaço da cópia e do duplo;

— Primeira citação: “A maior contribuição da América Latina para a cultura ocidental vem da destruição sistemática dos conceitos de unidade e de pureza: estes dois conceitos perdem o contorno exato do seu significado, perdem seu peso esmagador, seu sinal de superioridade cultural, à medida que o trabalho de contaminação dos latino-americanos se afirma, se mostra mais e mais eficaz. A América Latina institui seu lugar no mapa da civilização ocidental graças ao movimento de desvio da norma, ativo e destruidor, que transfigura os elementos feitos e imutáveis que os europeus exportavam para o Novo Mundo.” Silviano Santiago em “O entre-lugar do discurso latino-americano”;

— Segunda citação: “Guardando seu lugar na fila, é, no entanto, preciso que assinale sua diferença, marque  sua presença, uma presença muitas vezes de vanguarda. O silêncio seria a resposta desejada pelo imperialismo cultural, ou ainda o eco sonoro que apenas serve para apertar mais os laços do poder conquistador.

“Falar, escrever, significa: falar contra, escrever contra.” Silviano Santiago em “O entre-lugar do discurso latino-americano”.


3. Inventar um modo de ler: o leitor como modelador do texto literário:


— Desestabilizar o espaço da leitura, na medida em que o leitor se torna o modelador do texto literário, a ponto de modificar o estatuto genérico, rasurando a obra aqui e ali (Ricardo Piglia);

— Pensar na leitura como um jogo de escalas e, ao mesmo tempo, uma questão física: entre aproximação e distância. A leitura como arte da microscopia (Ricardo Piglia);

— Primeira citação: “Sempre existe algo de inquietante, ao mesmo tempo estranho e familiar, na imagem concentrada de alguém que lê, uma misteriosa intensidade que a literatura fixou inúmeras vezes. O sujeito se isolou, parece separado do real.” — Ricardo Piglia em “O que é um leitor?”;

— Segunda citação: “Talvez o maior ensinamento de Borges seja a certeza de que a ficção não depende apenas de quem a constrói, mas também de quem a lê. A ficção também é uma posição do intérprete. Nem tudo é ficção (Borges não é Derrida, não é Paul de Man), mas tudo pode ser lido como ficção. Ser borgeano (se é que isso existe) é ter a capacidade de ler tudo como ficção e de acreditar no poder da ficção. A ficção como uma teoria da leitura.”  Ricardo Piglia em “O que é um leitor?”.


4. Uma via de mão dupla: crítica como ficção e vice-versa:


— Pensar no discurso literário como uma confluência de múltiplos discursos — espaço de combinação e mutação (Ricardo Piglia);

— Pensar na América Latina como o espaço artístico e político do hibridismo por excelência;

— Primeira citação: “Quanto à crítica, penso que é uma das formas modernas da autobiografia. Alguém escreve sua vida quando acredita escrever suas leituras. [...] O crítico é aquele que reconstrói sua vida no interior dos textos que lê. A crítica é uma forma pós-freudiana da autobiografia.” Ricardo Piglia em “A leitura da ficção”;

— Segunda citação: “Seu labor inicial é o da desconstrução amorosa da veste institucional, uniforme, com o fim de recriar com o material apropriado um objeto que se apresenta como manto religioso.” Silviano Santiago em “Cosmological embroidery (Bordado cosmológico)”;

— Terceira citação: “Inscrita num dos mantos (22 de dezembro de 1938), esta frase de Arthur Bispo do Rosário não oferece lição diferente da que vimos afirmando: ‘Eu preciso destas palavras — escrita’. Gloso Arthur Bispo. Sou aquele que a comunidade de doutos julga louco e, por isso, me encarcerei numa cela da Colônia Juliano Moreira, onde moro, vivo e bordo. [...] Sou um desarticulador de frases e articulador de significados. Tudo em mim, para mim, por mim e para todos, é assemblage.” — Silviano Santiago em “Cosmological embroidery (Bordado cosmológico)”.


5. Desfecho e proposição: um ponto de partida para a literatura sergipana:


— Pensar numa citação de Arthur Bispo do Rosário como a imagem de início, meio e fim do trabalho literário nesta unidade federativa — Sergipe —, sobretudo no travessão, representando aí o espaço intervalar — o entre-lugar — dentro do qual está todo o trabalho crítico e ficcional, em linhas ou versos: “Eu preciso destas palavras — escrita”. Arthur Bispo do Rosário.


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Referências bibliográficas


AIRA, César. Sobre a Arte Contemporânea. Tradução de Victor da Rosa. Copenhague/Rio de Janeiro: Zazie Edições, 2018.

PIGLIA, Ricardo. “La lectura de la ficción”. In: Crítica y ficción. Buenos Aires: Debolsillo, 2017, p. 9-19.

PIGLIA, Ricardo. “O que é um leitor?”. In: O último leitor. Tradução de Heloísa Jahn. São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 11-25.

SANTIAGO, Silviano. “O entre-lugar do discurso latino-americano”. In: Uma literatura nos trópicos. Recife: Cepe Editora, 2019, p. 9-30.

SANTIAGO, Silviano. “Cosmological embroidery (Bordado cosmológico)”. In: 35 ensaios de Silviano Santiago. São Paulo: Companhia das Letras, 2019, p. 146-152.