Trair a noite
No livro Concerto e Arquitetura, do poeta Santo Souza, o poema derradeiro se distancia do que foi estabelecido na obra até aquele momento. Enquanto, na maioria dos textos, passamos por representações da noite e dos seres da noite, encontramos, no poema “Quase canção para embalar José”, imagens da aurora da vida, melhor dizendo, imagens de iluminação do passado: a infância do sujeito lírico em Riachuelo, município do leste sergipano, onde ele convivia com engenhos de “nomes líricos” e sujeitos errantes. A iluminação é, porém, irregular. Entre os versos do poema, há brechas ou sombras por meio das quais os leitores podem conceber outra versão para o mapa da cidade natal do “menino-José”, que é o modo como ele designa a si mesmo, apontando para o autor, cujo nome de batismo é José dos Santos.
Ele, o menino-José, desfez o pacto com a noite, uma vez que incluiu, no trabalho poético, registros memorialísticos, como o contato com homens mais velhos — Jonas, Seu Jácome e Zé Guedes são alguns dos personagens do poema, que, é verdade, contempla não só sujeitos, mas também lugares de Riachuelo — o Porto das Pedras, a Rua da Lama e a Rua da Salina, por exemplo. Mas o desvio é circunstancial. O lugar da poesia de Santo Souza é, por excelência, a noite, dentro da qual ele constrói relações com os mitos tanto dos argonautas quanto de Orfeu, repetidamente. O poema “Quase canção para embalar José” é, na verdade, a exceção, a partir da qual Luís Matheus Brito escreve Trair a noite.
O ensaio Trair a noite medita a respeito da ambiguidade que o último poema de Concerto e Arquitetura incorpora ao trabalho de Santo Souza. A princípio, a autora Luís Matheus Brito mergulha no jogo de ressonâncias entre sujeito lírico e sujeito empírico de “Quase canção para embalar José”, chamando a atenção para a impossibilidade de despontar traços melódicos ao longo da leitura. Despontam, na melhor das hipóteses, entroncamentos rítmicos. Assim, a ironia guia a peça, que, em vez do corte abrupto e ágil característico de boa parte dos poemas de Concerto e Arquitetura, possui versos que se prolongam até o fim da página. Sem adesões ao espaço em branco, a mancha gráfica de “Quase canção para embalar José” se distingue dos pares.
Aos poucos, o ensaio posiciona o poema na obra de Santo Souza. Há um “voltar-se para trás” como inclinação para as luzes ou “como o negativo do movimento instituído por Orfeu”, escreve Luís Matheus, “porque [Santo Souza, o menino-José] já está, desde o princípio, vinculado à noite”. Ela é um fenômeno inescapável para o poeta. Publicado em 1974, o livro Concerto e Arquitetura reúne dois manuscritos: “Opus para muitas vozes” e “Edifício de solidão”, no qual está, é claro, o poema medular para Trair a noite, que se encerra com um post scriptum a respeito de uma fotografia rara da juventude do autor: um retrato no qual ele inclina a cabeça para baixo, revelando — por causa do corte sagital — apenas uma parte do corpo, o lado esquerdo. A parte iluminada.
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Número de páginas: 44;
Formato: 10 x 15 cm;
Revisão: Lucas Ribeiro Rocha;
Data de lançamento: 15 de agosto de 2025;
Ilustração de capa: Konstruktion (1920-1922), de László Moholy-Nagy;
ISBN: 978-65-01-58776-9.